terça-feira, 26 de junho de 2007

Cotas na UFRGS

Caros colegas,

Como monitora da disciplina e responsável pelo blog, posto hoje dois textos de professores da UFRGS que se posicionam a favor da implementação de ações afirmativas na forma de cotas na universidade.

Como o blog não é meu, mas da turma, mesmo sendo favorável as cotas raciais na UFRGS, devo deixar em aberto para quem quiser se posicionar contrariamente.

Comentem, enviem e-mails e textos para as próximas postagens.
Como pedi autorização para os autores para postar seus textos, peço que façam o mesmo.

Marcele Lagreca Pedroso


POR QUE COTAS NA UFRGS?

Patrice Schuch*

A UFRGS está discutindo a implantação do sistema de cotas raciais para ingresso no vestibular. Embora as polêmicas mais acirradas estejam sendo efetuadas dentro dos muros da universidade, este debate interessa a todos nós. A desigualdade racial não é privilégio dos campos universitários. Contudo, a forma de ingresso em tais espaços
tem contribuído para o agravamento das disparidades das relações raciais na sociedade brasileira e não para sua superação. A implantação do sistema de cotas visa tornar essa realidade menos desigual. No entanto, essa medida vem sendo criticada, sobretudo,
através de três argumentos principais: 1) o que fundamenta a desigualdade na sociedade brasileira seria a estrutura de classe e não as relações raciais; 2) a noção de raça seria uma falácia, uma vez que tal conceito foi negado pela genética; 3) a idéia de que a
implantação das cotas levaria a uma "racialização" da sociedade brasileira. O que os três argumentos têm em comum é uma essencialização notável das diferenças e uma desconsideração das sutis, mas graves, opressões constitutivas das relações de raça no Brasil.

Embora fundamental, a estruturação das relações de classe é insuficiente para a compreensão das dinâmicas de constituição da subordinação social em nosso país e, em especial, para a avaliação do perfil dos jovens universitários. Estudos recentes das ciências sociais têm extrapolado as dicotomias generalizantes para abarcar a exploração das diferenças entre classes sociais e no interior das classes sociais. As intersecções entre raça e classe, por exemplo, revelam que a sociedade está recortada por múltiplas camadas de subordinação que não podem ser reduzidas unicamente à questão de
classe. Entre os mais pobres, ainda assim os negros têm menor acesso aos recursos sociais básicos do que os brancos e são as maiores vítimas de violência social e policial. A imbricação entre raça e classe, por outro lado, produz a inusitada situação em que, na
universidade com maior percentual de professores negros - a Universidade de Brasília - esse percentual seja de apenas 1%. Na UFRGS, menos de 2% dos estudantes e 0,3% dos professores são negros. A raça é, assim, um fator importante de subordinação social, seja entre a classe mais rica, seja entre a classe mais pobre.

Ignorar a persistência da raça é, portanto, desconsiderar que a cor da pele, no Brasil, continua sendo uma chave de leitura para ordenar o real, mesmo que seus fundamentos biológicos já tenham sido ultrapassados há tempos. As estatísticas oficiais do IBGE são claras a esse respeito, basta querer lê-las. Se considerarmos a taxa de mortalidade infantil, por exemplo, vemos que há anos o percentual de incidência desse problema tem sido maior para negros do que para os brancos. Além disso, os negros morrem, em média, mais cedo do que os brancos. As causas das mortes também são diferentes, segundo pesquisa do Ministério da Saúde, publicada em 2004: enquanto para a população negra a principal causa de morte vem de homicídios, acidentes de trânsito, suicídios e outras mortes consideradas violentas, para os brancos a principal causa de morte são as doenças circulatórias. Dados recentes de uma pesquisa do Ministério do Desenvolvimento Social apontam outras situações desiguais: entre os quilombolas, a
proporção de crianças de até cinco anos desnutridas é 76,1% maior do que o restante da população brasileira. O ingresso nos bancos universitários reproduz essa tendência desigual: segundo os dados levantados pelo PNUD no "Relatório de Desenvolvimento Humano Brasil 2005: Racismo, pobreza e violência", no ano de 2000 o percentual dos
homens negros com mais de 30 anos de idade que tinha diploma de graduação (2,7%) era inferior ao mesmo dado registrado para os homens brancos em 1960 (3%), quarenta anos atrás.

Tais dados são contundentes no argumento de que a sociedade brasileira estrutura-se de forma efetiva também a partir da noção de raça. Denominar uma tentativa de transformação das desiguais relações raciais no Brasil como racista é se esquivar de participar de um processo de renegociação mais ampla do sentido de pertencimento e
inclusão social. A sociedade brasileira precisa discutir que tipo de relações sociais quer construir. A universidade tem uma tarefa importante a cumprir nesse sentido, tanto politizando o debate acerca de uma suposta harmonia racial, quanto no desenvolvimento de mecanismos para o combate de desigualdades raciais persistentes e silenciadas há muito.

* Antropóloga, pesquisadora associada ao Núcleo de Antropologia e
Cidadania da UFRGS, bolsista de pós-doutorado Jr do CNPq.


MÉRITO E COTAS: DOIS LADOS DA MESMA MOEDA

André Marenco*


Os argumentos de críticos e defensores de políticas afirmativas convergem em um ponto: para ambos, haveria uma oposição entre a instituição da meritocracia como regra para recrutamento acadêmico e a implantação de mecanismos compensatórios, sociais ou raciais. Adversários das cotas, retomando uma espécie de retórica da ameaça (Hirschman, 1992) afirmam que sua adoção eliminaria o mérito e o conhecimento prévio, premiando os menos capazes, com efeitos agregados sob a forma de mediocrização universitária. Defensores das cotas subestimam o significado racionalizador de instituições meritocráticas, resumindo a discussão com o argumento de que fins socialmente justos justificam a adoção dos meios necessários para atingi-los.
O equívoco de ambos consiste em não perceber a coerência existente entre meritocracia e a adoção de uma regra de cotas como procedimento para a ocupação de vagas universitárias. Em suas origens, meritocracia surge como alternativa ao status herdado pelo nascimento como critério para ocupação de postos públicos. Trata-se de substituir ascription por achievement, premiando a capacidade individual e não o berço na configuração da hierarquia social. A ironia é que vantagens adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas regras impostas pela individualização das sociedades modernas, reconvertendo capital econômico e social familiar, em capital escolar (Bourdieu, 1989, Boltanski, 1982). Investindo, desde o ensino fundamental, na formação escolar de seus herdeiros, famílias bem providas asseguram sua continuidade no interior das instituições universitárias de maior prestígio e qualidade, que oferecem títulos e diplomas mais valorizados no mercado, reproduzindo hierarquias plutocráticas dissimuladas em capacidade intelectual individual.
A conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito individual não deve induzir-nos ao desprezo pela relevância de regras meritocráticas, como condição para o estabelecimento de instituições racionais e impessoais. Trata-se de controlar as distorsões provocadas pela origem social, neutralizando o efeito path-dependent berço=diploma=renda.
John Rawls, o maior expoente do liberalismo político do século XX, ao apresentar sua concepção de justiça como eqüidade, ressalta que as desigualdades sociais e econômicas para serem aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e, beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 1971). Quem quer ser liberal, que ao menos seja coerente, e honre o significado desta consigna.
Meritocracia constitui um sistema distributivo, que confere de modo desigual vagas e títulos universitários, premiando a capacidade, responsabilidade e talento individuais. Para que seja justo, é preciso que esteja baseado em uma efetiva igualdade de oportunidades, julgando apenas o esforço e competência individual, e não o sobrenome (o que, parece óbvio, não constitui mérito próprio). Desta forma, instituir um sistema de cotas é a alternativa eficaz e racional para assegurar um indispensável critério meritocrático, como procedimento para o recrutamento aos bancos universitários.
A probabilidade de um branco ingressar na universidade é, no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid (PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de violência e criminalidade, enquando nossa classe média vive seu Baile da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial e talento individual.
Políticas afirmativas devem oferecer oportunidades de mobilidade social inter-geracional, projetando as condições para a constituição de uma ampla classe média negra, que incremente uma economia de mercado no Brasil. Trata-se de ir além da hipocrisia de falar em cursos técnicos e profissionalizantes para jovens pobres e negros, como se fosse suficiente oferecer a estes a auspiciosa perspectiva de serem, no futuro, balconistas, garçons ou recepcionistas. Teremos harmonia racial quando for corriqueiro consultar-nos com médicos negros, sermos julgados por magistrados negros, dirigidos por executivos negros e ensinados por professores negros. Mas, talvez, seja isso precisamente que amedronta nossa classe média.

* Cientista Político - UFRGS

Nenhum comentário: