quinta-feira, 29 de abril de 2010

Belo Monte - Veiculado pelo portal da ABA

http://www.abant.org.br/conteudo/005COMISSOESGTS/Documentos%20da%20CAI/globo-5u1gus2n82wsrl63mb0_original.pdf

Autênticos em 1500,
hoje ou em 2154?
João Pacheco de Oliveira

● É comum jornais, filmes
e comerciais de TV suporem
que os índios são (ou
d e v e r i a m s e r ) i g u a i s
àqueles descritos pelos
primeiros cronistas, inteiramente
exteriores ao
universo ocidental. Nessa
representação, o tempo
transcorreu de modo
absolutamente diverso
para “brancos” e “índios”.
Uns, os não indígenas,
estão situados na
História e se caracterizam
pela variabilidade,
mudança e complexidade.
Os outros, os indígenas,
são como estátuas
de pedra, que apenas podem
apresentar-se como
idênticas ao que antes
(supostamente) eram.
Recusar ao índio a História
e o exercício da própria
voz, imaginando-o
apenas antes da chegada
dos brancos, é um expediente
útil para silenciar
sobre o violento processo
de colonização, propiciando
uma autoanistia
aos colonizadores. É essa
categoria redonda, inteiramente
infensa à História,
plena de seduções e lisa
de culpas, que o senso
comum repete e consagra
incessantemente. Em estudos
anteriores, eu apontei
um artifício narrativo
que chamei de “o efeito
túnel do tempo”. O artifício
garantia a qualquer
não índio, como em um
passe de mágica, uma flagrante
superioridade em
relação a qualquer indígena.
É também com base
nisso que a tutela, apesar
de autoritária e etnocêntrica,
veio a ser simploriamente
legitimada como
instituto necessário e até
filantrópico.
Tal ideia está muito viva
nas mais variadas manifestações
discursivas
dos brasileiros: artes, literatura,
chiste e linguagem
cotidiana. Os índios
seriam algo apenas relativo
ao passado colonial
do Brasil, havendo uma
enorme e generalizada dificuldade
em compreender
os índios atuais.
O reconhecimento se
limita a faixas da Amazônia,
onde ainda haveria
grupos isolados e arredios
(“índios verdadeiros”).
Os demais são ditos
apenas “remanescentes”,
índios “misturados”
e, no limite, “falsos índios”.
Pretende-se instituir
uma polaridade entre
as culturas indígenas “intocadas”
(seriam as autênticas)
e aquelas afetadas
por “processos de
aculturação” (seriam
inautênticas). Partindo
daí, setores da administração
pública colocam
em segundo plano as demandas
de “índios” no
Nordeste, seja omitindose
face ao reconhecimento
de suas terras, seja criminalizando
suas lideranças
e enquadrando-as em
um regime carcerário
próprio de praticantes de
crimes hediondos (vide
www.abant.org.br).
Os direitos indígenas,
tais como definidos na
Constituição de 1988 e na
Convenção 169 (acolhida
no Brasil em 2003), não
d e c o r re m , p o r é m , d e
uma condição de pureza
cultural a ser comprovada
nos índios e coletividades
indígenas atuais,
mas sim do reconhecimento
pelo Estado de sua
condição de descendentes
da população autóctone.
Trata-se de um mecanismo
compensatório
pela expropriação territorial,
pelo extermínio de
incontáveis etnias e pela
perda de uma significativa
parcela de seu patrimônio
cultural.
Não é justificado estabelecer
parâmetros arbitrários
para definir o
que é (ou o que deva
ser) uma cultura indígena.
A incorporação de rituais,
crenças e práticas
exógenas não necessariamente
significa que
aquela cultura já não seria
“autenticamente indígena”
ou pertencesse
a “índios aculturados”.
Para constituir analiticamente
uma cultura, é
preciso partir do que
pensam, fazem e sentem
o s s e u s p o r t a d o r e s
atuais. É preciso libertar-
se do efeito “túnel do
tempo”, da abordagem
objetificante e da relação
tutelar.
Os debates sobre Belo
Monte nos evidenciam
essa complexidade. Ali
se expressam as velhas
concepções sobre os indígenas,
que alimentam
tanto argumentos desenvolvimentistas
quanto
ambiguidades do discurso
tutelar. Manifestase
também uma tensão
no interior do novo paradigma,
uma vez que os
indígenas buscam exercer
o seu protagonismo,
mesmo assumindo posições
temporariamente
antagônicas — como no
caso da aldeia Paquiçamba.
Aprender a respeitar
e a lidar com a
contemporaneidade do
indígena será um aprendizado
importante para
as autoridades.
Os embates ideológicos
fizeram curiosamente
reviver o potencial utópico
da figura do índio,
apropriando-se agora da
poderosa máquina de fabricação
de mitos que é o
cinema e remetendo-os
ao futuro. A retórica dos
ecologistas estabeleceu
u m p a r a l e l o e n t re o s
Na’vi e os indígenas atuais
da região, visando a apontar
os riscos para o ecossistema
amazônico e mesmo
planetário. A disputa
pela autenticidade remete
agora a 2154!
JOÃO PACHECO DE OLIVEIRA
é antropólogo, professor
titular do Museu
Nacional/UFRJ.

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