sábado, 20 de março de 2010

Audiência pública sobre reserva de vagas nas universidades

De: Dora Lucia de Lima Bertulio
Procuradora-Chefe da Procuradoria Federal na Fundação Cultural Palmares

Texto lido na Audiência Pública do Supremo Tribunal Federal que analisa a constitucionalidade da reserva de vagas por critérios sociais e raciais para ingresso nas universidades públicas, e que será votada pelos ministros do Supremo nesse ano. veja os treês dias de audiência no youtube.com do STF

Intervenção proferida pelo prof. Luiz Felipe de Alencastro. Cientista Político e Historiador. Professor titular da cátedra de História do Brasil da Universidade de Paris IV Sorbonne em Brasilia, março de 2010.


"No presente ano de 2010, os brasileiros afro-descendentes, os
cidadãos que se auto-definem como pretos e pardos no recenseamento
nacional, passam a formar a maioria da população do país. A partir
de agora -, na conceituação consolidada em décadas de pesquisas e
de análises metodológicas do IBGE -, mais da metade dos brasileiros
são negros.

Esta mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos
sobre o nosso passado, sobre quem somos e de onde viemos, e traz
também desafios para o nosso futuro.

Minha fala tentará juntar os dois aspectos do problema, partindo
de um resumo histórico para chegar à atualidade e ao julgamento
que nos ocupa. Os ensinamentos sobre nosso passado, referem-se à
densa presença da população negra na formação do povo brasileiro.
Todos nós sabemos que esta presença originou-se e desenvolveu-se
na violência. Contudo, a extensão e o impacto do escravismo não
tem sido suficientemente sublinhada. A petição inicial de ADPF
apresentada pelo DEM a esta Corte fala genéricamente sobre "o
racismo e a opção pela escravidão negra » (pp. 37-40), sem
considerar a especificidade do escravismo em nosso país.

Na realidade, nenhum país americano praticou a escravidão em tão
larga escala como o Brasil. Do total de cerca de 11 milhões de
africanos deportados e chegados vivos nas Américas, 44% (perto de
5 milhões) vieram para o território brasileiro num período de três
séculos (1550-1856). O outro grande país escravista do continente,
os Estados Unidos, praticou o tráfico negreiro por pouco mais de
um século (entre 1675 e 1808) e recebeu uma proporção muito menor
-, perto de 560.000 africanos -, ou seja, 5,5% do total do tráfico
transatlantico.[1] No final das contas, o Brasil se apresenta como
o agregado político americano que captou o maior número de
africanos e que manteve durante mais tempo a escravidão.

Durante estes três séculos, vieram para este lado do Atlântico
milhões de africanos que, em meio à miséria e ao sofrimento,
tiveram coragem e esperança para constituir as famílias e as
culturas formadoras de uma parte essencial do povo brasileiro.
Arrancados para sempre de suas famílias, de sua aldeia, de seu
continente, eles foram deportados por negreiros luso-brasileiros
e, em seguida, por traficantes genuinamente brasileiros que os
trouxeram acorrentados em navios arvorando o auriverde pendão de
nossa terra, como narram estrofes menos lembradas do poema de
Castro Alves.

No século XIX, o Império do Brasil aparece ainda como a única
nação independente que praticava o tráfico negreiro em larga
escala. Alvo da pressão diplomática e naval britânica, o comércio
oceânico de africanos passou a ser proscrito por uma rede de
tratados internacionais que a Inglaterra teceu no Atlântico. [2]

O tratado anglo-português de 1818 vetava o tráfico no norte do
equador. Na sequência do tratado anglo-brasileiro de 1826, a lei
de 7 de novembro de 1831, proibiu a totalidade do comércio
atlântico de africanos no Brasil.

Entretanto, 50.000 africanos oriundos do norte do Equador são
ilegalmente desembarcados entre 1818 e 1831, e 710.000 indivíduos,
vindos de todas as partes da África, são trazidos entre 1831 e
1856, num circuito de tráfico clandestino. Ora, da m esma forma que
o tratado de 1818, a lei de 1831 assegurava plena liberdade aos
africanos introduzidos no país após a proibição. Em conseqüência,
os alegados proprietários desses indivíduos livres eram
considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179
do «Código Criminal», de 1830, que punia o ato de "reduzir à
escravidão a pessoa livre que se achar em posse de sua liberdade.

A lei de 7 de novembro 1831 impunha aos infratores uma pena
pecuniária e o reembôlso das despesas com o reenvio do africano
sequestrado para qualquer porto da África. Tais penalidades são
reiteradas no artigo 4° da Lei de 4 de setembro de 1850, a lei
Eusébio de Queirós que acabou definitivamente com o tráfico
negreiro.

Porém, na década de 1850, o governo imperial anistiou, na prática,
os senhores culpados do crime de seqüestro, mas deixou livre curso
ao crime correlato, a escravização de pessoas livres.[3] De golpe,
os 760.000 africanos desembarcados até 1856 -, e a totalidade de
seus descendentes -, continuaram sendo mantidos ilegalmente na
escravidão até 1888[4]. Para que não estourassem rebeliões de
escravos e de gente ilegalmente escravizada, para que a
ilegalidade da posse de cada senhor, de cada seqüestrador, não se
transformasse em insegurança coletiva dos proprietários, de seus
sócios e credores -, abalando todo o país -, era preciso que
vigorasse um conluio geral, um pacto implícito em favor da
violação da lei. Um pacto fundado nos "interesses coletivos da
sociedade", como sentenciou, em 1854, o ministro da Justiça,
Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco.

O tema subjaz aos debates da época. O próprio Joaquim Nabuco -,
que está sendo homenageado neste ano do centenário de sua morte -,
escrevia com todas as letras em "O Abolicionismo" (1883): "Durante
cinqüenta anos a grande maioria da propriedade escrava foi
possuída ilegalmente. Nada seria mais difícil aos senhores,
tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal
escrupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em
massa"[5].

Tal "tribunal escrupuloso" jamais instaurou-se nas cortes
judiciárias, nem tampouco na historiografia do país. Tirante as
ações impetradas por um certo número de advogados e magistrados
abolicionistas, o assunto permaneceu encoberto na época e foi
praticamente ignorado pelas gerações seguintes.

Resta que este crime coletivo guarda um significado dramático: ao
arrepio da lei, a maioria dos africanos cativados no Brasil a
partir de 1818 -, e todos os seus descendentes -, foram mantidos
na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas
gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava.
Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda -,
primeiro e sobretudo -, ilegal. Como escreví, tenho para mim que
este pacto dos sequestadores constitui o pecado original da
sociedade e da ordem jurídica brasileira.[6]

Firmava-se duradouramente o princípio da impunidade e do casuísmo
da lei que marca nossa história e permanece como um desafio
constante aos tribunais e a esta Suprema Corte. Consequentemente,
não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança
escravista.

Outra deformidade gerada pelos "males que a escravidão criou",
para retomar uma expressão de Joaquim Nabuco, refere-se à
violência policial.

Para expor o assunto, volto ao século XIX, abordando um ponto da
história do direito penal que os ministros desta Corte conhecem
bem e que peço a permissão para relembrar.

Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos Estados
Unidos, o escravismo passou a ser consubstancial ao State
building , à organização das instituições nacionais. Houve, assim,
uma modernização do escravismo para adequá-lo ao direito positivo
e às novas normas ocidentais que regulavam a propriedade privada e
as liberdades públicas. Entre as múltiplas contradições
engendradas por esta situação, uma relevava do Código Penal: como
punir o escravo delinqüente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor
do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena prisão?

Para solucionar o problema, o quadro legal foi definido em dois
tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, em seu artigo
179, a extinção das punições físicas constantes nas aplicações
penais portuguesas. "Desde já ficam abolidos os açoites, a
tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis"; a
Constituição também prescrevia: "as cadeias serão seguras, limpas
e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus,
conforme suas circunstâncias e natureza de seus crimes".

Conforme os princípios do Iluminismo, ficavam assim preservadas as
liberdades e a dignidade dos homens livres.

Num segundo tempo, o Código Criminal de 1830 tratou
especificamente da prisão dos escravos, os quais representavam uma
forte proporção de habitantes do Império. No seu artigo 60, o Código
reatualiza a pena de tortura. "Se o réu for escravo e
incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será
condenado na de açoites, e depois de os sofrer, será entregue a
seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e
maneira que o juiz designar, o número de açoites será fixado na
sentença e o escravo não poderá levar por dia mais de 50". Com o
açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava
resolvido o dilema.

Longe de restringir-se ao campo, a escravidão também se arraigava
nas cidades. Em 1850, o Rio de Janeiro contava 110.000 escravos
entre seus 266.000 habitantes, reunindo a maior concentração
urbana de escravos da época moderna. Neste quadro social, a
questão da segurança pública e da criminalidade assumia um viés
específico.[7] De maneira mais eficaz que a prisão, o terror, a
ameça do açoite em público, servia para intimidar os escravos.

Oficializada até o final do Império, esta prática punitiva
estendeu-se às camadas desfavorecidas, aos negros em particular e
aos pobres em geral. Junto com a privatização da justiça efetuada
no campo pelos fazendeiros, tais procedimentos travaram o advento
de uma política de segurança pública fundada nos princípios da
liberdade individual e dos d ireitos humanos.

Enfim, uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta
diretamente o estatuto da cidadania.

É sabido que nas eleições censitárias de dois graus
ocorrendo no Império, até a Lei Saraiva, de 1881, os
analfabetos, incluindo negros e mulatos alforriados,
podiam ser votantes, isto é, eleitores de primeiro
grau, que elegiam eleitores de 2° grau (cerca de
20.000 homens em 1870), os quais podiam eleger e ser
eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram
suprimidos os dois graus de eleitores e em 1882, o
voto dos analfabetos foi vetado. Decidida no contexto
pré-abolicionista, a proibição buscava criar um
ferrolho que barrasse o acesso do corpo eleitoral à
maioria dos libertos. Gerou-se um estatuto de
infracidadania que perdurou até 1985, quando foi
autorizado o voto do analfabeto. O conjunto dos
analfabetos brasileiros, brancos e negros, foi
atingido.[8] Mas a exclusão política foi mais
impactante na população negra, onde o analfabetismo
registrava, e continua registrando, taxas
proporcionalmente bem mais altas do que entre os
brancos.[9]

Pelos motivos apontados acima, os ensinamentos do passado ajudam a
situar o atual julgamento sobre cotas universitárias na
perspectiva da construção da nação e do sistema politico de nosso
país. Nascidas no século XIX, a partir da impunidade garantida aos
proprietários de indivíduos ilegalmente escravizados, da violência
e das torturas infligidas aos escravos e da infracidadania
reservada ao libertos, as arbitrariedades engendradas pelo
escravismo submergiram o país inteiro.

Por isso, agindo em sentido inverso, a redução das discriminações
que ainda pesam sobre os afrobrasileiros -, hoje majoritários no
seio da população -, consolidará nossa democracia.

Portanto, não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória,
destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos
usurpados de uma comunidade específica, como foi o caso, em boa
medida, nos memoráveis julgamentos desta Corte sobre a demarcação
das terras indígenas. No presente julgamento, trata-se, sobretudo,
de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no
aperfeiçoamento da democracia, no vir a ser da nação. Tais são os
desafios que as cotas raciais universitárias colocam ao nosso
presente e ao nosso futuro.

Atacando as cotas universitárias, a ADPF do DEM, traz no seu ponto
3 o seguinte título « o perigo da importação de modelos : os
exemplos de Ruanda e dos Estados Estados Unidos da América » (pps.
41-43). Trata-se de uma comparação absurda no primeiro caso e
inepta no segundo.

Qual o paralelo entre o Brasil e Ruanda, que alcançou a
independência apenas em 1962 e viu-se envolvido, desde 1990, numa
conflagração generalizada que os especialistas denominam a «
primeira guerra mundial africana », implicando também o Burundi,
Uganda, Angola, o Congo Kinsasha e o Zimbabuê, e que culminou, em
1994, com o genocídio de quase 1 milhão de tutsis e milhares de
hutus ruandenses ?

Na comparação com os Estados Unidos, a alegação é inepta por duas
razões. Primeiro, os Estados Unidos são a mais antiga democracia
do mundo e servem de exemplo a instituições que consolidaram o
sistema político no Brasil. Nosso federalismo, nosso STF -, vosso
STF - são calcados no modelo americano. Não há nada de "perigoso"
na importação de práticas americanas que possam reforçar nossa
democracia. A segunda razão da inépcia reside no fato de que o
movimento negro e a defesa dos direitos dos ex-escravos e
afrodescendentes tem, como ficou dito acima, raízes profundas na
história nacional. Desde o século XIX, magistrados e advogados
brancos e negros tem tido um papel fundamental nesta
reinvidicações.

Assim, ao contrário do que se tem dito e escrito, a discussão
relançada nos anos 1970-1980 sobre as desigualdades raciais é
muito mais o resultado da atualização das estatísticas sociais
brasileiras, num contexto de lutas democráticas contra a ditadura,
do que uma propalada « americanização » do debate sobre a
discriminação racial em nosso país. Aliás, foram estas mesmas
circunstâncias que suscitaram, na mesma época, os questionamentos
sobre a distribuição da renda no quadro do alegado « milagre
econômico ». Havia, até a realização da primeira PNAD incluindo o
critério cor, em 1976, um grande desconhecimento sobre a evolução
demográfica e social dos afrodescendentes.

De fato, no Censo de 1950, as estatísticas sobre cor eram
limitadas, no Censo de 1960, elas ficaram inutilizadas e no Censo
de 1970 elas eram inexistentes. Este longo período de eclipse
estatística facilitou a difusão da ideologia da "democracia
racial brasileira", que apregoava de inexistência de discriminação
racial no país. Todavia, as PNADs de 1976, 1984, 1987, 1995, 1999
e os Censos de 1980, 1991 e 2000, incluíram o critério cor.
Constatou-se, então, que no decurso de três décadas, a
; desigualdade racial permanecia no quadro de uma sociedade mais
urbanizada, mais educada e com muito maior renda do que em 1940 e
1950. Ou seja, ficava provado que a desigualdade racial tinha um
carácter estrutural que não se reduzia com progresso econômico e
social do país. Daí o adensamento das reinvidicações da comunidade
negra, apoiadas por vários partidos políticos e por boa parte dos
movimentos sociais.

Nesta perspectiva, cabe lembrar que a democracia, a prática
democrática, consiste num processo dinâmico, reformado e
completado ao longo das décadas pelos legisladores brasileiros, em
resposta às aspirações da sociedade e às iniciativas de países
pioneiros. Foi somente em 1932 -, ainda assim com as conhecidas
restrições suprimidas em 1946 -, que o voto feminino instaurou-se
no Brasil. Na época, os setores tradicionalistas alegaram que a
capacitação política das mulheres iria dividir as famílias e
perturbar a tranquilidade de nação. Pouco a pouco, normas
consensuais que impediam a plena cidadania e a realização
profissional das mulheres foram sendo reduzidas, segundo o
preceito -, aplicável também na questão racial -, de que se deve
tratar de maneira desigual o problema gerado por uma situação
desigual.

Para além do caso da política de cotas da UNB, o que está em pauta
neste julgamento são, a meu ver, duas questões essenciais.

A primeira é a seguinte : malgrado a inexistência de um quadro
legal discriminatório a população afrobrasileira é discriminada
nos dias de hoje?

A resposta está retratada nas creches, nas ruas, nas escolas, nas
universidades, nas cadeias, nos laudos dos IML de todo o Brasil.

Não me cabe aqui entrar na análise de estatísticas raciais,
sociais e econômicas que serão abordadas por diversos
especialistas no âmbito desta Audiência Pública. Observo,
entretanto, que a ADPF apresentada pelo DEM, na parte intitulada «

A manipulação dos indicadores sociais envolvendo a raça » (pp.
54-59), alinha algumas cifras e cita como única fonte analítica, o
livro do jornalista Ali Kamel, o qual, como é sabido, não é
versado no estudo das estatísticas do IBGE, do IPEA, da ONU e das
incontáveis pesquisas e teses brasileiras e estrangeiras que
demonstram, maciçamente, a existência de discriminação racial no
Brasil.

Dai decorre a segunda pergunta que pode ser formulada em dois
tempos. O sistema de promoção social posto em prática desde o
final da escravidão poderá eliminar as desigualdades que cercam os
afrobrasile iros? A expansão do sistema de bolsas e de cotas pelo
critério social provocará uma redução destas desigualdades ?

Os dados das PNAD organizados pelo IPEA mostram, ao contrário, que
as disparidades se mantém ao longo da última década. Mais ainda, a
entrada no ensino superior exacerba a desigualdade racial no
Brasil.

Dessa forma, no ensino fundamental (de 7 a 14 anos), a diferença
entre brancos e negros começou a diminuir a partir de 1999 e em
2008 a taxa de frequência entre os dois grupos é praticamente a
mesma, em torno de 95% e 94% respectivamente. No ensino médio (de
15 a 17 anos) há uma diferença quase constante desde entre 1992 e
2008. Neste último ano, foram registrados 61,0% de alunos brancos
e 42,0% de alunos negros desta mesma faixa etária. Porém, no
ensino superior a diferença entre os dois grupos se escancara. Em
2008, nas faixas etárias de brancos maiores de 18 anos de idade,
havia 20,5% de estudantes universitários e nas faixas etárias de
negros maiores de 18 anos, só 7,7% de estudantes
universitários.[10] Patenteia-se que o acesso ao ensino superior
constitui um gargalo incontornável para a ascensão social dos
negros brasileiros.

Por todas estas razões, reafirmo minha adesão ao sistema de cotas
raciais aplicad o pela Universidade de Brasília.

Penso que seria uma simplificação apresentar a discussão sobre as
cotas raciais como um corte entre a esquerda e a direita, o
governo e a oposição ou o PT e o PSDB. Como no caso do plebiscito
de 1993, sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, a clivagem
atravessa as linhas partidárias e ideológicas. Aliàs, as primeiras
medidas de política afirmativa relativas à população negra foram
tomadas, como é conhecido, pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

Como deixei claro, utilizei vários estudos do IPEA para embasar
meus argumentos. Ora, tanto o presidente do IPEA no segundo
governo Fernando Henrique Cardoso, o professor Roberto Borges
Martins, como o presidente do IPEA no segundo governo Lula, o
professor Márcio Porchman -, colegas por quem tenho respeito e
admiração -, coordenaram vários estudos sobre a discriminação
racial no Brasil nos dias de hoje e são ambos favoráveis às
políticas afirmativas e às políticas de cotas raciais.

A existência de alianças transversais deve nos conduzir -, mesmo
num ano de eleições -, a um debate menos ideologizado, onde os
argumentos de uns e de outros possam ser analisados a fim de
contribuir para a superação da desigualdade racial que pesa sobre
os negro s e a democracia brasileira.

[1].Ver o Database da Universidade de Harvard acessível no sítio
http://www.slavevoyages.org/tast/index.faces

[2]. Demonstrando um grande desconhecimento da história pátria e
supercialidade em sua argumentação, a petição do DEM afirma na
página 35: "Por que não direcionamos a Portugal e à Inglaterra a
indenização a ser devida aos afrodescendentes, já que foram os
portugueses e os ingleses quem organizaram o tráfico de escravos e
a escravidão no Brasil?". Como é amplamente conhecido, os ingleses
não tiveram participação no escravismo brasileiro, visto que o
tráfico negreiro constituía-se como um monopólio português, com
ativa participação brasileira no século XIX. Bem ao contrário, por
razões que não cabe desenvolver neste texto, a Inglaterra teve um
papel decisivo na extinção do tráfico negreiro para o Brasil

[3]. A. Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil - Ensaio
Histórico, Jurídico, Social (1867), Vozes, Petrópolis, R.J., 1976,
2 vols. , v. 1, pp. 201-222. Numa mensagem confidencial ao
presidente da província de São Paulo, em 1854, Nabuco de Araújo,
ministro da Justiça, invoca "os interesses coletivos da
sociedade", para não aplicar a lei de 1831, prevendo a liberdade
dos africanos introduzidos após esta data, Joaquim Nabuco, Um
Estadista do Império (1897-1899), Topbooks, Rio de Janeiro, 1997,
2 vols., v. 1, p. 229, n. 6

[4] . Beatriz G. Mamigonian, comunicação no seminário do Centre
d'Études du Brésil et de l'Atlantique Sud, Université de Paris IV
Sorbonne, 21/11/2006; D.Eltis, Economic Growth and the Ending of
the Transatlantic Slave Trade, Oxford University Press, Oxford,
U.K. 1989, appendix A, pp. 234-244.

[5] . Joaquim Nabuco, O Abolicionismo (1883), ed. Vozes,
Petrópolis, R.J., 1977, pp 115-120, 189. Quinze anos depois,
confirmando a importância primordial do tráfico de africanos -, e
da na reprodução desterritorializada da produção escravista -,
Nabuco afirma que foi mais fácil abolir a escravidão em 1888, do
que fazer cumprir a lei de 1831, id., Um Estadista do Império
(1897-1899), Rio de Janeiro, Topbooks,1997, 2 vols., v. 1, p. 228.

[6] . L.F. de Alencastro, "A desmemória e o recalque do crime na
política b rasileira", in Adauto Novaes, O Esquecimento da
Política, Agir Editora, Rio de Janeiro, 2007, pp. 321-334.


[7] . Luiz Felipe de Alencastro, "Proletários e Escravos:
imigrantes portugueses e cativos africanos no Rio de Janeiro
1850-1870", in Novos Estudos Cebrap, n. 21, 1988, pp. 30-56;

[8] . Elza Berquó e LF. de Alencastro, "A Emergência do Voto
Negro", Novos Estudos Cebrap, São Paulo, nº33, 1992, pp.77-88.

[9] . O censo de 1980 mostrava que o índice de indivíduos maiores
de cinco anos "sem instrução ou com menos de 1 ano de instrução"
era de 47,3% entre os pretos, 47,6% entre os pardos e 25,1% entre
os brancos. A desproporção reduziu-se em seguida, mas não tem se
modificado nos últimos 20 anos. Segundo as PNADs, em 1992,
verificava-se que na população maior de 15 anos, os brancos
analfabetos representavam 4,0 % e os negros 6,1 %, em 2008 as
taxas eram, respectivamente de 6,5% e 8,3%. O aumento das taxas de
analfabetos provém, em boa parte, do fato que a partir de 2004, as
PNADs passa a incorporar a população rural de Rondônia, Acre,
Amazonas,Roraima, Pará e Amapá. Dados extraídos das tabelas do
IPEA.
; [10] . Dados fornecidos pelo pesquisador do IPEA, Mario Lisboa
Theodoro, que também participa desta Audiência Pública.



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