quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Trabalho de aula - Reflexões sobre o filme "Tudo sobre minha mãe", de Pedro Almodóvar

Zadelene Zaro*

Breves observações gerais:

As personagens são:

Em um primeiro plano: Mulheres - a atriz, a freira, a travesti, a mãe tradicional, a lésbica, a drogada, a “normal”.

Em um segundo plano: ‘Instituições’ - a igreja, o mundo artístico/a arte, a família em antigas e novas concepções; o ‘mundo’ da transgressão.

1 – Com os sujeitos lidam com as regras sociais?

Em um plano imediato percebe-se que a relação dos personagens com as regras sociais oscila entre seu reconhecimento formal ou efetivo e sua ‘negação’, explícita, ou implicitamente.

Não há, portanto, rigidez na relação com as regras. Ora elas são reconhecidas, mas burladas, como exemplo talvez mais contundente podemos considerar o caso da personagem Manuela que, vinculada a um programa oficial de doação de órgãos, conhece e segue suas normas – ou seja, participa dessa universalidade -, até que seus desejos e interesses são confrontados e ela inverte a relação, subsumindo o universal ao particular e vai conhecer o receptor do órgão do filho. Ora elas são reafirmadas como forma de manter articulado um ‘sistema de idéias’, ainda que superado pela realidade vivida, como no caso da mãe da freira, que falsifica Chagal, mas busca manter as aparências e, por isso, em um momento recrimina a filha por “[colocar] uma puta na minha casa”, em outro pede a Manuela que não deixe transpirar a informação sobre a soropositividade de seu neto.

Nessa mesma estória que se desenvolve na trama das estórias que a obra de Almodovar articula, quando Rosa, a freira, já grávida – quer dizer, após haver descumprido uma regra fundamental de sua condição de freira – é questionada por Manuela sobre o que pretende fazer, sua resposta imediata é: “ter a criança, o que esperava?”. Há, de um lado, o enfraquecimento da capacidade de coerção da regra explícita da instituição a que se dedica, a Igreja Católica, mas de outro, um tal fortalecimento do conteúdo moral a que se aplica tal regramento, que é tratado como ‘natural’, pela personagem, que a conseqüência necessária da concepção seja a gestação e a natalidade.

Ainda nesse sentido, ela, Rosa, não sabe onde está o pai da criança, no caso uma travesti, mas quando questionada por Manuela sobre a ciência quanto a quem é esse pai, mostra-se ofendida e devolve: “por quem me tomas?”.

E novamente nessa seqüência, a interferência da mãe da personagem, vai reforçar a percepção de que o vínculo a um código de condutas que todo o contexto envolvido ultrapassa é meramente formal, pois quando ao vê a filha grávida tem como primeira questão: “O que vais fazer, casar?”. Isto é, sequer preocupa-se com os aspectos afetivos envolvidos, ou com o aspecto vocacional, mas somente com o compromisso do ‘aparecer’ socialmente exigido.

Outro momento que chama a atenção, pela aparente ‘normalidade’ que apresenta diante das normas de comportamento, surge com relação ao uso de drogas. Em uma cena, a personagem Huma, a atriz, critica a colega e amante Nina, por sua dependência de drogas, porém, ato contínuo, acende um cigarro. O que aqui pode parecer ‘normal’, sugere uma contradição, visto que toda a cena indica uma preocupação de Huma com Nina entremeada de aspectos afetivos, portanto, que vão para além do risco social que o consumo de drogas representa, avançando para a preocupação com o indivíduo que a consome e, no entanto, ela mesma declara nesta cena que aprendeu a consumir uma droga lícita – o cigarro -, seguindo uma regra não formal da sua e de tantas gerações, qual seja, a de buscar identificar-se com um de seus ícones, no caso, Bette Davis. A afirmação de Huma, nesse caso é bastante contundente: “aos 18 anos fumava como uma chaminé”.

Também esse tema oferece outra cena rica: Agrado, a travesti que acaba por ir trabalhar com Huma, passa um pito em Nina porque esta se droga. Mas ao fazer isso, a regra social parece pouco importar, de fato, já que o que ela contrapõe às supostas motivações de Nina para drogar-se é o fato de que ela “tem uma mulher [...][que a] adora”.

Logo, há uma fluidez característica na relação dos personagens do filme com relação às regras sociais.

2 – Como transformam ou explicam seus impulsos, desejos?

Os desejos seguem de perto a tensão existente frente as regras sociais. Por vezes levam à transgressão de tais regras sociais, como quando Manuela, diante do desejo de (man)ter o filho perto – vai atrás do transplantado que recebeu o coração do filho, mesmo descumprindo uma norma que toda sua prática profissional buscava referendar.

Em outras ocasiões seguem o curso esperado, como no caso em que Rosa abandona a ordem religiosa, pelo desejo de ter seu filho, ou quando ela afirma a Manuela que as mulheres são mais tolerantes, por isso aceitam situações adversas.

No geral da trama, entretanto, os personagens transitam entre a aceitação – rara – da negação da satisfação de seu desejo, como a mãe que se conforma diante da aceitação das “esquisitices” da filha freira; a superação desses desejos; e a confrontação das regras que se interpõe entre seus desejos e sua realização. Nesse último caso, os personagens vão de impulso em impulso, em busca de satisfação.

Exemplos: o desejo de ter um Chanel que leva Agrado, à fraude e sua dissimulação das razões para essa fraude: “como posso investir meio milhão em um Chanel com tanta fome neste mundo”.

O desejo de encontrar Nina que faz Huma dar a chave de seu carro a uma estranha e ir às ‘bocas de drogas’ em uma noite escura.

O ator que interpela Agrado e afirma que: “estive o dia inteiro nervoso, podes me chupar?”

Nina que se chapa no intervalo da peça – ou seja, se entrega a seu desejo - e pede para ver o “pau” de Agrado, ao que esta reage afirmando “a companhia toda está obcecada com meu pau”, mas também aceitando e, assim, satisfazendo, também, seus próprios desejos.

3 – Como o nosso diretor – Almodóvar – sugere/define as diferenças e fronteiras entre o cultural e o natural?

Pode-se considerar que o autor abre o filme tematizando a tensão nas fronteiras do que poderíamos tomar por ‘natural’ e/ou por ‘cultural’, já que, na primeira cena vemos uma equipe em um centro cirúrgico tentando reabilitar os sinais vitais de alguém que, entretanto, não reage e morre e, na medida em que seus órgãos salvam a vida de outros impedindo que o clico biológico siga seu curso, percebemos que as próprias noções de vida, biológico, natural, etc. são postas em questão.

Porém, com sutilezas, mas ao mesmo passo, de forma gritante emergem os pontos cinzas, borrados daquelas fronteiras quando o objeto de análise passa para o aspecto da sexualidade e o papel dos travestis no filme. Aqui o autor parece dizer que o que tomamos por natural é culturalmente e que o cultural se naturaliza tão logo se inscreva nas relações sociais.

Exemplo marcante dessa questão aparece com uma das falas da personagem Agrado acerca das drags: “uma mulher são seus cabelos, suas unhas” – ou seja, ela, Agrado, é a imagem de uma mulher, “as drags me dão nojo: já viste uma mulher careca?”. A representação que Agrado faz do gênero feminino e do significado do ser mulher está profundamente marcada por traços culturais, não devendo em nada para o biológico. Não é por nascer fêmea que se é mulher, mas por assumir-se como tal e, diante disso, assumir as conseqüências que daí advém, quais sejam, a reprodução de uma série de esteriótipos e, mesmo, marcas físicas, que remetem à imagem de uma mulher. A cena sequer sugere que haja por parte de Agrado algum questionamento quanto a seu lugar nessa classificação.

Por seu turno, Manuela - até onde o filme permite perceber, uma mulher (uma fêmea da espécie humana?) que tem como representação de gênero o feminino - define toda uma trajetória de vida em função de uma relação com alguém que viveu e lhe permitiu presenciar uma mudança exterior daquela representação de gênero que, talvez, expressasse uma realidade vivida interiormente, mas que, no entanto, não segue em sua exteriorização a expressão que se poderia esperar.

Trata-se aqui de Lola, o “marido” de Manuela que, segundo ela, ao voltar de uma viagem de trabalho, após dois anos distante, “A não ser pelo par de tetas, [...] não havia mudado tanto.” Aqui sobressai o fato de que é mais facilmente aceita a mudança pela personagem no corpo, naquilo que Lola tinha de ‘natural’, do que a aceitação da atitude diante das regras sociais e da reprodução de aspectos culturais, como podemos perceber por uma sua afirmação quanto ao comportamento daquele marido: “Como se pode ser machista quando se tem um par de tetas”.

Em contrapartida, o autor não nos permite que simplesmente nos entreguemos facilmente à idéia de que há uma independência completa dos personagens com relação a compromissos – culturais – fundados naquilo que podemos tomar como natural. Lembremos de um diálogo entre Rosa e Manuela em que a última adverte a freira: “Aos pais não se elegem, são o que são.”

Essas e tantas outras cenas não privilegiadas na presente abordagem nos permitem notar que o autor provoca insistentemente um esgarçamento da linha divisória entre o que convencionamos chamar de natural e o que assumidamente tratamos por cultural.

Porém, a frase lapidar para essa questão, surge na cena em que Agrado ocupa o palco, por ocasião do cancelamento da peça que Huma e Nina encenavam e, após relatar um sem número de cirurgias plásticas, depilações a cera e implantes de silicone a que se submeteu, afirma no final: “Se é mais autêntica quanto mais se parece com o que se sonhou para si mesma.”


* Zadelene Zaro é acadêmica do curso de Filosofia da UFRGS e aluna da disciplina Antropologia I - Teoria Antropológica

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